quinta-feira, 4 de março de 2010

Economista solidária

Há mais de três décadas, as ideias revolucionárias de Hazel Henderson inquietam economistas e políticos. Conheça a história da autodidata que se tornou uma voz planetária da economia sustentável.

“A mulher que mostrou ao mundo o que está errado na economia”. Em entrevista à GINGKO, Hazel Henderson revelou ser assim que gostaria que o neto a recordasse.

Considerada por muitos ícone da sustentabilidade, futurista ou anti-economista, Hazel explica com clareza a sua abordagem ao mundo que tem de se desvendar: “Prefiro ser acupunturista global, pois identifico os pontos nevrálgicos dos sistemas econômicos, indicando a cura para os seus efeitos nefastos”. Desafiando os paradigmas mais tradicionais, defende há mais de três décadas uma visão revolucionária, muitas vezes incômoda, da economia. “Não estávamos preparados para os ensinamentos de Hazel nas décadas de 70 e 80. Mas não faz mal porque, do futuro de onde veio, ela já estava à espera. Por isso, quase octogenária, continua com um espírito vivaz como uma criança que se encanta com as vicissitudes do mundo, sem medo e com alegria contagiante”, afirmou à GINGKO Ricardo Young, presidente do Instituto Ethos, referência brasileira no setor da consultoria em sustentabilidade empresarial.

Ativista autodidata, Hazel Henderson nasceu perto do mar, na cidade inglesa de Bristol, há 76 anos. Com um pai austero e difícil e uma mãe doce e generosa, resolveu construir sozinha o seu caminho. Em vez da esperada licenciatura, Hazel abandonou os
estudos e a casa dos pais e foi morar com a irmã. Queria aprender, mas não numa sala de aula. Por isso fez de tudo um pouco. Foi vendedora, recepcionista de hotel e empregada num clube de golfe. “Desde muito cedo percebi que não era empregável e por isso tive de me inventar”, diz com graça. Autodidata e influenciada pelo gosto da mãe, sempre adorou ler. Devorava livros. Nas bibliotecas escolhia os que mais lhe interessavam e correspondia-se por carta com os autores, colocando-lhes as mais variadas questões. Hazel reconhece: “Tive os melhores professores possíveis. Eram os próprios escritores!”.

Depois de uma passagem pelas Bermudas, o casamento fixou-a em Nova Iorque, onde a maternidade passou a ocupá-la em exclusivo. No entanto, contra todas as expectativas, em meados dos anos 60 tornou-se numa empenhada ativista ambiental. A fuligem que encontrava diariamente na roupa e no corpo da filha alertou-a para a poluição da cidade, o que a levou a criar o movimento Citizens for Clean Air, que em poucas semanas atraiu cerca de 20 mil pessoas. “Foi a licenciatura mais rápida que se pode imaginar! Num curtíssimo espaço de tempo aprendi noções ambientais e de biologia, descobri como organizar campanhas de sensibilização e percebi como funcionam as multinacionais e o governo local”, reconhece Hazel. Foi sempre entre os líderes políticos e empresariais que sentiu mais dificuldades em ser
aceita. “Você é simpática, mas não percebe nada de economia”, respondiam-lhe com frequência. Uma provocação que lhe serviu de inspiração para muitos anos de estudo, em que economia e ecologia se tornaram inseparáveis.

Economia do amor

Hazel Henderson lembra-se do que despertou o seu desejo de mudar o mundo: “Ver que o trabalho das mulheres era desvalorizado, o que tornava a sociedade menos justa e a economia desequilibrada”. O seu novo olhar para a economia de um país foi influenciado por esta constatação e assemelha-se, como ela própria diz, a “um bolo de três camadas com cobertura”. A cobertura é o setor privado, empreendedor e criativo, apoiado na camada representada pelo setor público, sustentado pelos impostos e incluindo todas as infra-estruturas e bens colectivos. A visão tradicional considera que a soma destes dois níveis mostra a riqueza de um país. Hazel defende que existem neste bolo mais duas camadas essenciais, que estão fora da visão dos economistas. Uma delas é a chamada economia do amor, onde está todo o trabalho não remunerado, movido pela cooperação e solidariedade, como o voluntariado, serviços domésticos, educação dos filhos ou assistência aos idosos. Segundo Hazel, esta economia do amor representa cerca de 50% de todo o trabalho produtivo realizado em qualquer sociedade, chegando mesmo a 65% em países em desenvolvimento. A segunda camada é ocupada pela economia da natureza, com todo o potencial dos seus recursos naturais. Hazel defende, há 30 anos, que é preciso considerar estas duas últimas camadas para a avaliação da riqueza e progresso de um país. Basear as decisões políticas em indicadores econômicos que apenas consideram o topo do bolo é, para ela, limitador. “É ridículo medirmos o progresso de um país apenas pelo PIB. É como tripular um Boeing 747 tendo no painel de instrumentos apenas o indicador da pressão do óleo”.

Além do PIB

O ambientalista norte-americano Bill McKibben, no seu best-seller Deep Economy, escreveu: “Até há pouco tempo, ideias como felicidade ou qualidade de vida eram o gênero de conceitos que os economistas colocavam de parte, como irrelevâncias poéticas vindas de pessoas sem jeito para a matemática”. Hazel sempre se orgulhou de ser uma delas. E embora achasse que o seu trabalho só começaria a fazer sentido para as pessoas muito tempo depois da sua morte, a realidade é que os seus alertas, lançados já nos anos 70, começam agora a ter eco oficial. No início de 2008 o governo francês criou a Comissão Stiglitz com o objetivo de identificar os limites do PIB como indicador de desenvolvimento econômico e progresso social, e de propor alternativas estatísticas. Numa comunicação de Setembro passado, o comissário europeu para o ambiente, Stavros Dimas, reconheceu: “Para mudarmos o mundo temos de alterar a forma como o conhecemos e o percebemos, e para isso precisamos ir além do PIB (www.beyond-gdp.eu)”. Antecipando este cenário, Hazel Henderson co-criou, em 2000, os Indicadores de Qualidade de Vida Calvert-Henderson, que avaliam ativos ecológicos, sociais e culturais de um país, como educação, energia, emprego, saúde, ambiente, direitos humanos e segurança pública (www.calvert-henderson.com).

Trajetória incomum

A energia que colocou nas primeiras iniciativas como ativista ambiental manteve-se ao longo do percurso. Hazel foi uma dona de casa que se transformou, quatro décadas mais tarde, numa voz planetária da economia sustentável. Autora de oitos livros, traduzidos para dez línguas, publica artigos em mais de 250 jornais e revistas, como a Harvard Business Review, The New York Times e Le Monde Diplomatique. Tem sido membro do conselho consultivo de prestigiadas organizações sociais e ambientais, como o Worldwatch Institute e o Social Investment Forum. Membro honorário do Clube de Roma, foi também consultora do U.S. Office of Technology Assessment e da National Science Foundation. Sem certificados acadêmicos formais, é Doutora Honoris Causa pelas universidades de Tóquio, São Francisco e Massachusetts. Da sua extensa lista de prêmios destaca-se o Global Citizen Award, que partilhou em 1996 com o Nobel da Paz A. Perez Esquivel. Trajeto que inspira os que se cruzam com ela. “Hazel é imbatível na lucidez do seu diagnóstico, admirável na agudeza com que desnuda o status quo, e estimulante na eficácia das suas propostas inovadoras. Conviver com ela é entrar para um universo ainda invisível aos olhos da grande maioria, mas fundamental para o amanhã de todos nós” – este o retrato feito a seu respeito por Christina Carvalho Pinto, líder da plataforma Mercado Ético para a América Latina, atual projeto de Hazel Henderson.

Naturalizada norte-americana, Hazel vive em St. Augustine (Florida), a mais antiga comunidade européia nos Estados Unidos. Continua a opor-se ao consumismo desenfreado e ao endeusamento do dinheiro, defendendo uma economia solidária com as pessoas e com a natureza. Uma nova ciência da vida, com que é resgatada a função original do mercado: pura troca de produtos e serviços a nível local, agora com a preciosa ajuda da internet. Para mostrar ao mundo que as suas ideias não são utopias, criou em 2005 a plataforma multimédia Ethical Markets, uma das maiores e mais completas do mundo dedicada à sustentabilidade. Os conteúdos chegam a mais de 80 milhões de pessoas, através da televisão, internet, livros, vídeos e organização de workshops. “É uma mostra de histórias reais inspiradoras de lideranças empresariais que incorporam os novos valores que transcendem a economia, redefinem o conceito de riqueza e promovem o crescimento através do respeito pelo ser humano e pelo ambiente”, descreve Hazel. Um programa que corporiza a sua antiga paixão de dar voz a projetos em que todos ganham. Otimista por natureza, trabalhando tantas vezes no limiar do quase impossível, Hazel Henderson nunca se desencorajou e, como confidenciou à GINGKO, continua a acreditar. “As mudanças necessárias para o mundo são geracionais, e sei que não as conseguiremos alcançar durante o meu tempo de vida. Mas sei que seremos capazes”.


Por Ana Sofia Rodrigues, publicado na revista GINGKO.

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