terça-feira, 21 de junho de 2011

RDC pode ser retrocesso na transparência das contas públicas

A questão dos orçamentos da Copa de 2014 voltou às manchetes ontem e a notícia não é boa: a Câmara dos Deputados aprovou a medida provisória enviada pela Presidência da República que cria o Regime Diferenciado de Contratações (RDC), específico para a Copa das Confederações, em 2013, a Copa do Mundo de 2014 e a Olimpíada e Paraolimpíada de 2016.

Ao contrário do que se tem apontado como problema – o sigilo dos orçamentos durante a licitação –, o verdadeiro desafio que o RDC impõe para a sociedade é aprofundar a mobilização para controlar as possíveis demandas por aditivos nos orçamentos, que só precisam da aprovação do representante local da Fifa ou do COI e da prefeitura da cidade-sede para serem aceitos pela União, Estados e municípios envolvidos nesses eventos.


Essa medida relativa aos aditivos foi incluída de última hora, como destaque do texto da Medida Provisória 527/11, que trata do RDC. Se passar na votação do Senado, no próximo dia 28/6, será muito difícil conseguir a transparência nos orçamentos pela qual a sociedade civil vem se mobilizando.

O que é o RDC
Sob a justificativa de que é preciso acelerar o processo de licitação das obras públicas para a Copa das Confederações, em 2013, a Copa do Mundo, em 2014, e a Olimpíada e Paraolimpíada, no Rio de Janeiro, em 2016, a Presidência da República editou, em 18 de março último, a Medida Provisória 527/11, que cria o Regime Diferenciado de Contratações (RDC), o qual dá direito à União, aos Estados e aos municípios de realizar “contratação integrada” (ou “turn key”) para as referidas obras. O órgão público responsável não precisa necessariamente usar a contratação integrada para licitar as obras, mas pode fazê-lo, se achar melhor.

Então, é importante esclarecer que o RDC não extingue a lei de licitação existente. Ele abre opções para as obras que se referem aos megaeventos citados, apressando a licitação e a própria execução.

E como é a contratação por licitação, na área pública? Existem seis modalidades de licitação:
- Concorrência, para grandes obras;
- Tomada de preços, para obras médias;
- Pregão, para compra de materiais de consumo;
- Convite, para pequenas obras e serviços;
- Concurso, para trabalhos artísticos; e
- Leilão, para venda de patrimônio do Estado.

Por regra, as contratações são parciais: uma empresa fica com a estrutura, outra com a edificação e uma terceira com o acabamento.

O que mudou com o RDC? Como já mencionamos, esse regime permite a “contratação integrada” para as obras dos megaeventos esportivos que o Brasil sediará. Isso significa que a própria União, os Estados e os municípios podem contratar uma só empresa para cuidar do projeto básico, da estrutura, da edificação e do acabamento. Essa empresa deve entregar a obra à administração pública pronta para uso.

Outra inovação introduzida pelo RDC diz respeito ao projeto básico e ao orçamento. Pela lei de licitação vigente, o governo tanto pode fazer os projetos básicos das obras quanto contratar empresa para isso. De qualquer forma, precisa entregar aos licitantes um orçamento de quanto pretende gastar, incluindo uma relação minuciosa dos materiais e mão-de-obra que serão usados em todo o empreendimento.

O que diz a MP aprovada
Na modalidade da contratação integrada, o governo entrega apenas um “anteprojeto de engenharia” com um orçamento prévio às empresas licitantes. Esse orçamento deve ser baseado em preços de mercado ou naqueles já pagos em contratações semelhantes, ou ainda calculados de acordo com outras metodologias. Eis outro problema do RDC: o anteprojeto de engenharia não foi previsto para ser também um instrumento de controle de gastos, como é o projeto básico.

E mais: pela MP original, tanto o anteprojeto quanto os valores estimados seriam informados aos órgãos de controle e não haveria restrições à revelação dos dados. Mais ainda: os órgãos de controle poderiam solicitar informações antes ou depois do final da licitação. No entanto, o destaque incluído na última hora e aprovado pela Câmara permite à administração pública manter sigilo desse orçamento interno até o final da licitação. Os órgãos controladores também não têm garantia de acesso em qualquer momento aos dados dos orçamentos. Com isso, em tese, os governos que contratarem obras para os eventos citados só precisarão informar os gastos no final do processo de licitação – e não no final da obra, como vem sendo divulgado. Não será possível haver monitoramento nem da parte dos órgãos controladores da administração pública, nem da sociedade, desde o planejamento e o projeto da obra.

O problema não está tanto nesse sigilo. Aqui no Instituto Ethos, por exemplo, qualquer compra ou contratação de fornecedores é feita por edital e nele especificamos detalhadamente como deve ser o produto ou serviço que desejamos adquirir. Mas não informamos, no edital, quanto queremos gastar. Esse orçamento, no entanto, é conhecido pela área contratante, pelo departamento financeiro e pela diretoria, que acompanham todo o processo de escolha do fornecedor.

O problema é que o sigilo estipulado pelo RDC vai além dos fornecedores, estendendo-se aos órgãos controladores da própria administração pública e à sociedade civil. Em tese, esses deveriam ser os primeiros a conhecer os detalhes de qualquer projeto envolvendo dinheiro do cidadão.

Além do mais, já existem outros instrumentos institucionais que protegem o Estado de ações de cartéis visando provocar ampliação de gastos. Por que criar outra ferramenta no RDC?

Outras medidas do RDC
O Regime Diferenciado de Contratação estabelece outros pontos polêmicos, como:
a possibilidade de aumento sem limite do valor de um contrato. São os chamados aditivos, na mesma licitação. Hoje, esses aditivos não podem passar de 25% para obras novas e de 50% para reformas. Para as obras da Copa e da Olimpíada, basta uma carta assinada pelos representantes locais da Fifa ou do COI para que o aditivo seja sem limite. Não é preciso nem alterar o projeto para justificar o gasto a mais.
a inversão das fases da licitação. Atualmente, para participar de uma licitação para grandes obras, é preciso primeiro se habilitar juridicamente e só depois oferecer as propostas. Com isso, gasta-se longo tempo analisando papéis de empresas que sequer vão ter condições de executar o trabalho ao final. No entanto, segundo ministros do TCU, evita-se que “aventureiros” apresentem propostas irrisórias e, ao vencer a licitação, busquem a adequação jurídica de qualquer maneira.

Pelo RDC, só quem vencer a licitação precisará apresentar a documentação, ganhando-se muito tempo com isso. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), é necessário estabelecer um valor-limite, abaixo do qual o empresário precisará provar ter mesmo condições de executar a obra.

Enfim, em vez de aperfeiçoarmos uma legislação que garanta e amplie a transparência das contas públicas para a sociedade, estamos andando na mão inversa.

O alegado atraso nas obras não é justificativa para a adoção de medidas que representam, inclusive, um retrocesso na democracia brasileira. Mesmo que seja possível aos cidadãos acessar as informações, o processo será muito demorado, pois impede o livre acesso dos cidadãos a dados que lhes dizem respeito. Afinal, de onde sairá o dinheiro para pagar a conta?

Podem entrar no RDC as obras do Maracanã, no Rio de Janeiro (R$ 1 bilhão), as obras do estádio Arena das Dunas, em Natal (R$ 400 milhões), obras em 8 portos e 12 aeroportos (R$ 3 bilhões) e obras de mobilidade urbana (R$ 11 bilhões).

Para comparar, o programa Brasil Sem Miséria prevê gastos de R$ 4 bilhões para atender 16 milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza (R$ 70 por mês). No total, o Bolsa Família gastará R$ 16 bilhões este ano para garantir segurança alimentar para 32 milhões de brasileiros.

O argumento para justificar o RDC tem sido o de proteger os interesses da sociedade e do Estado. Mas, não seria melhor ouvir a própria sociedade para saber se ela se sente protegida por esse instrumento legal? Além disso, ainda não se sabe qual será o legado socioambiental dessas obras. Vamos pagar para termos o quê, afinal? Uma coleção de estádios elefantes-brancos?

O Instituto Ethos, por meio do projeto Jogos Limpos Dentro e Fora dos Estádios, tem procurado mostrar que a melhor proteção contra a malversação de dinheiro público é a transparência total e a mobilização cidadã no monitoramento dos gastos.

Desde que foi lançado, no final do ano passado, o projeto já criou um comitê nacional e mais cinco comitês locais que estão fazendo parcerias com outras organizações da sociedade civil comprometidas com a luta anticorrupção. Os Jogos Limpos estão desenvolvendo ações junto com os Conselhos Regionais de Engenharia, Arquitetura e Agronomia, a Central Única dos Trabalhadores, o Pacto Global da ONU, a Controladoria-Geral da União e a Rede Cidades Sustentáveis, entre outras entidades da sociedade civil. O objetivo é fazer com que o cidadão sinta-se “empoderado” para monitorar os gastos relativos à Copa e à Olimpíada, tanto no seu bairro ou na sua cidade quanto no país.

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