quinta-feira, 21 de maio de 2009

O Dragão mostra suas garras

Mensagem enviada por Gustavo Ferroni
Coordenador do projeto GT Ethos – ISO 26000
São Paulo, 20/05/2008


A norma ISO 26000 e os interesses econômicos


O processo de construção da norma ISO 26000 se apresentou muito mais complexo do que o esperado. Após o inicio dos trabalhos, em 2005, quando ocorreu a primeira reunião internacional em Salvador na Bahia; os participantes do Grupo de Trabalho de Responsabilidade Social da ISO se organizaram por país e pelos seguintes grupos de stakeholder: Empresas, Consumidores, ONGs, Governo, Trabalhadores e Suporte, Pesquisa, Serviços e Outros.

Em um primeiro momento, houve uma sensação geral de boa vontade e todos estavam felizes por participar de um processo tão importante e com tanto potencial. Porém esta sensação logo foi substituída por posições defensivas e antagonistas, isto é, de uma intenção de construção coletiva e participativa logo os trabalhos se traduziram em uma negociação de interesses e expectativas das diversas partes envolvidas.

Uma “negociação de interesses” parece ser algo mesquinho e obscuro, mas na verdade é ago legitimo e comum. A unanimidade não é algo saudável e mesmo em questões como bem estar social, desenvolvimento sustentável e responsabilidade social diferentes visões podem existir. Grandes processos com engajamento de diversos setores tendem naturalmente a uma negociação de interesses, tanto no âmbito internacional quanto no âmbito nacional. Ainda assim, é claro que interesses mesquinhos e obscuros existem, e no caso da norma ISO 26000 isto também é verdade.



Desde o ano passado os representantes de alguns países passaram a agir de maneira mais agressiva no processo. Isto não é a toa, a norma esta chegando perto de sua publicação e a chance de excluir ou incluir itens esta diminuindo. Na reunião de Santiago, ocorrida em setembro de 2008, os representantes da China se posicionaram de maneira contundente contra alguns conceitos que a norma traz. Na época eles foram contrários ao avanço da norma e se opunham a diversos pontos específicos do texto, um dos focos principais de sua oposição foi o principio que a norma apresenta sobre normas internacionais de comportamento (veja a tradução deste trecho no final). Sua ação não foi bem sucedida e a norma avançou para o próximo estágio de construção sem que os pontos criticados pelos chineses fossem alterados.

Entre a reunião de Santiago e a reunião de Quebec (que esta ocorrendo agora durante os dias 16 e 22 de maio) representantes chineses enviaram cartas aos governos envolvidos e viajaram o globo para advogar que os organismos de normalização participantes (as ABNTs de cada país) votassem contra o avanço da norma. Não podemos afirmar com certeza que eles visitaram todos os países envolvidos na construção da norma, mas este parece ser o caso (estiveram inclusive no Brasil com o Itamaraty e outros ministérios, e também com a ABNT). Alguns países asiáticos parecem ter sido especialmente suscetíveis as pressões chinesas, inclusive alterando seu voto com relação à norma.

Aqui em Quebec o dragão já mostrou suas garras. Desta vez o discurso foi remodelado, ao invés de uma posição apenas negativa e de oposição a alguns trechos da norma, eles adotaram um discurso de preocupação solidária. Um dos principais motes, por enquanto, é a preocupação com os consumidores dos países em desenvolvimento. Em seu discurso dizem que se a norma trouxer expectativas muito altas isto poderia gerar uma elevação dos custos de produção e, como conseqüência, uma exclusão das camadas mais pobres de consumidores em países em desenvolvimento.

Ao escutar isto a primeira vez alguém pode até se sentir compelido a concordar, afinal o argumento parece mostrar uma preocupação genuína com as camadas mais pobres da população. Mas será que é isso mesmo?

Posso afirmar, com certeza, que não é. Este tipo de argumento nos coloca sobre uma falsa escolha e nega a própria natureza dos conceitos de responsabilidade social, desenvolvimento sustentável e sustentabilidade.

A falsa escolha colocada pelo argumento é a escolha entre preço e condições de produção. A responsabilidade social representa exatamente a mudança de paradigma que marca o fim da busca pelo maior lucro possível e o início de uma abordagem sistêmica onde se busca o equilíbrio entre as questões econômicas, ambientais e sociais. Se partirmos de um ponto de visto onde o preço baixo é o mais importante (mesmo que seja para garantir o acesso das pessoas) como ficam então as condições de produção com relação ao trabalho, ao meio ambiente, aos fornecedores e etc?

Partir do ponto de visto do preço nos colocaria em um circulo vicioso, onde mudanças estruturais na sociedade não poderiam ocorrer, pois ameaçariam o preço baixo.

Porém, se partirmos do ponto de visto onde o acesso a produtos é importante (e não o preço baixo para garantir este acesso) outras questões vêm a nossa mente. Por exemplo, salário mínimo, jornada de trabalho, descanso obrigatório, educação, saúde etc. Na nossa sociedade, além dos recursos financeiros precisamos de outros fatores para exercer o nosso papel de cidadão e de consumidor. Precisamos ter lazer, liberdade, educação, saúde, segurança, garantia de direitos e qualidade de vida em geral. Se tivéssemos todas estas questões asseguradas seria razoável presumirmos que o poder de compra da população aumentaria, haveria taxas baixas de desemprego e com isso os salários seriam mais altos. Ou seja, mudanças estruturais são interdependentes e permitem que o circulo vicioso seja rompido, permitindo um melhor qualidade de vida para a população em geral.

Outra maneira de percebermos a falsidade deste argumento é ampliarmos ainda mais abordagem. Acima discutimos a questão de um ponto de vista do desenvolvimento econômico e social. Devemos também levar em consideração que quando falamos em desenvolvimento sustentável estamos nos referindo a uma mudança de paradigma muito maior, estamos falando de uma mudança nos nossos valores e de nossos padrões de vida. Hoje já é claro, e inclusive cientificamente comprovado, que se continuarmos produzindo e consumindo da maneira que fazemos agora e na quantidade que fazemos agora, o resultado será apenas um: o da catástrofe. Não agora, talvez não amanhã, mas no futuro com certeza.

O planeta não consegue repor os recursos que retiramos e não suporta a quantidade de itens que despejamos (seja emissão de gases ou lixo sólido). Quando falamos de desenvolvimento sustentável, responsabilidade social e sustentabilidade estamos falando, então, de uma mudança grande na nossa sociedade. Estamos falando de não consumir na mesma quantidade e de não produzir da mesma maneira que fizemos até aqui. De não valorizar bens materiais como fazemos hoje, de não valorizar o luxo e a opulência como fazemos hoje. De abrir mão do acumulo, do “ter mais” individual pelo “ter mais” como grupo, como sociedade.

Quando os delegados chineses falaram no aumento do preço de produtos como um problema, em nenhum momento falaram em produtos e itens essenciais ou em qualidade de vida. A verdadeira preocupação mostrada por eles não é com o acesso a produtos que permitam melhorar o bem estar da população, mas sim com o consumo desenfreado e a vantagem competitiva chinesa de mão de obra barata. É a mesma valorização do crescimento econômico em si que estamos acostumados a ver e criticar, é a velha postura de não se considerar como igualmente relevantes as questões relacionadas ao meio ambiente e justiça social.

Sim, definitivamente o dragão mostrou as suas garras. Economistas e especialistas em comércio exterior gostam de utilizar a china como um exemplo de força e eficiência, e a figura do dragão é quase sempre utilizada para simbolizar isto. Porém, em uma discussão sobre responsabilidade social a China não é um exemplo, muito pelo contrário. Por enquanto os representantes chineses estão confirmaram isto nesta reunião de Quebec, mas esperamos que neste fórum o peso político e econômico chinês não tenha a mesma repercussão que em fóruns econômicos tradicionais.

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Este trecho foi extraído da tradução livre feita pela ABNT do documento ISO/TMB WG SR N 157, sujeita a erros ou imprecisões. (Versão 02 – 11.02.2009)

4.7 Respeito por normas internacionais de comportamento

O princípio é: uma organização deveria respeitar as normas internacionais de comportamento, ao mesmo tempo em que adere ao princípio do respeito ao estado de direito.

- Nos países onde a lei nacional ou sua regulamentação não prevêem proteções ambientais ou sociais mínimas, uma organização deveria esforçar-se para respeitar normas internacionais do comportamento.

- Onde a lei nacional ou sua regulamentação proíbem organizações de respeitar normas internacionais do comportamento, uma organização deveria esforçar-se para respeitar tais normas na maior extensão possível

- Nas situações de conflito com normas internacionais do comportamento, e onde não seguir estas normas traria conseqüências significativas, uma organização deveria, se possível e apropriado, rever a natureza de seus atividades e relacionamentos dentro dessa jurisdição.

Uma organização deveria considerar oportunidades e os canais legítimos para procurar influenciar organizações e autoridades relevantes para remediar tais conflitos na lei nacional e na sua execução.

Uma organização deveria evitar cumplicidade nas atividades de uma outra organização que não atenda normas internacionais de comportamento.

Em caso de dúvida ou discordância, recomendamos antes consultar a versão original, em inglês

Caixa 2 Entendendo 928 cumplicidade

Cumplicidade tem significados legais e não legais.

No contexto legal cumplicidade foi definida em algumas jurisdições como o fornecimento consciente de auxílio substancial ao cometimento de um ato ilegal, tal como um crime.

No contexto não-legal, cumplicidade deriva das expectativas sociais amplas do comportamento. Neste contexto, uma organização pode ser considerada cúmplice quando ajuda no cometimento de atos indevidos por outros que a organização, através do exercício da devida diligência, sabia ou deveria saber que conduziria a impactos negativos substanciais no ambiente ou na sociedade. Uma organização pode também ser considerada cúmplice sepermanecer silenciosa ou tirar proveito de tais atos indevidos.

Um comentário:

  1. Bom dia Gustavo!
    Fiquei contente em saber que finalmente se chegou a um "modelo operacional" da norma, e curioso em ver como vai reagir o mundo empresarial e a sociedade em geral. Aliás (e falo sem ainda conhecer o conteúdo da norma) pergunto-me também se o haverá alguma alteração nos indicadores Ethos, que por si já é uma excelente ferramenta de avaliação.
    Grande abraço

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