sexta-feira, 22 de maio de 2009

Ursula Burns e a importância da diversidade na cultura organizacional

Texto comentado por Paulo Itacarambi*, na Rádio CBN

O que faz uma empresa gigante no setor, mas à beira da falência por crise e mudança de mercado, reagir e voltar ao topo? Estrita política de restrição de custos, demissões, enxugamento, novos produtos, marketing agressivo...Dificilmente, nesta lista, aparece o fator “diversidade” como impulsionador da virada. Será que não teve mesmo nada a ver?

A gigante que quase caiu que citamos acima é a Xerox. Em 2001, Anne Mulcahy assumiu o posto de executiva-chefe com a tarefa de reverter os sucessivos prejuízos e queda nas vendas. Na época, era uma das dez mulheres a ocupar um cargo semelhante. A diferença com as outra nove é a que Xerox encontrava-se numa encruzilhada, com seus produtos tornados repentinamente obsoletos pelo estouro da internet.

Para superar a crise, Mulcahy aplicou algumas receitas amargas tradicionais das cartilhas de negócios. Mas também investiu na mudança cultural. E agora, em 2009, passa o bastão para Úrsula Burns, como Anne funcionária de carreira da empresa e negra. É o primeiro caso, no mundo corporativo americano – e talvez mundial – em que uma mulher transfere o comando de uma das 50 maiores corporações do mundo para outra mulher. Não é o primeiro caso de mulher não-branca a ocupar posto tão elevado. Antes de Úrsula Burns, em 2006, Indra Nooyi, nascida na Índia, chegou ao posto mais alto na Pepsico e hoje é apontada como a executiva mais poderosa do mundo, homens incluídos. Mais importante, Indra foi a primeira mulher não americana a chegar ao posto de CEO numa múlti tão tipicamente americana como a Pepsico.

Tanto Indra quanto Úrsula são parte de um fenômeno global que está redefinindo o papel das empresas e, ao fazer isso, transfere poder para parcelas dos funcionários que antes se viam alijados desta possibilidade de ascensão.

Por que ainda não vemos este movimento ocorrer em grande escala no Brasil, se nos orgulhamos tanto de nossa diversidade? Por que nossas empresas, mesmos as nacionais, mesmo as estatais, ainda não conseguem dar voz e decisão aos representantes de todas as etnias que ajudam a construir o nosso país? Por que estamos dilapidando esta nossa riqueza, em vez de usá-la para alavancar nosso desenvolvimento ?

A sociodiversidade e biodiversidade brasileiras são duas grandes riquezas que a nossa sociedade vem dilapidando de forma irresponsável, em prejuízo para as futuras gerações. Em vez de as utilizarmos como âncoras do desenvolvimento de nossa sociedade, estamos destruindo-as em nome de um falso tipo de desenvolvimento que, no fundo, representa a expansão de um modo de vida insustentável, baseado na cultura do individualismo, da ganância, do consumismo, da mercantilização de todas as relações e da apropriação privada de tudo e de todos.

As nações indígenas, os quilombolas, o caboclo, o ribeirinho, o pantaneiro, enfim as populações que vivem nas florestas, cerrados e campos, cujas culturas acumulam conhecimentos de convívio humano em equilíbrio com os ecossistemas na natureza, estão sendo dizimadas sob o olhar complacente do restante da sociedade brasileira. Essas culturas têm um valor inestimável diante do maior desafio que a humanidade está enfrentando atualmente, o desafio de evitar sua própria extinção.

Além de prestarem um importante serviço à nossa sociedade e ao planeta de preservação da biodiversidade e de cuidados com a manutenção dos serviços ambientais, os conhecimentos desenvolvidos e reproduzidos durante séculos por aquelas culturas podem ser fontes de inspiração e aprendizagem para a grande tarefa da humanidade, que é a construção de um novo padrão civilizatório sem o qual nunca seremos uma sociedade sustentável e justa.

Entendo que este nosso diálogo sobre a cultura de convivência com o diverso é, sem dúvida, uma forma adequada de apontar caminhos para mudar a situação comentada acima. Para aprofundar nossa reflexão, devemos então nos perguntar: o que queremos em uma cultura de convivência do diverso? O que é preciso mudar? Onde? Como?

O que queremos em uma cultura diversa

Falo do meu próprio desejo, porque acredito que ele é convergente com o desejo da maioria das pessoas que querem uma sociedade com essa cultura diversa. Quero uma sociedade em que as pessoas, de forma individual e coletiva, valorizam a vida em todas as suas dimensões e por isso cuidam para que as relações entre os seres vivos, em especial entre as pessoas, se realizem em condições de igualdade, com ampla liberdade e total solidariedade.

A liberdade é condição indispensável para que cada um de nós possa escolher o modo de produzir a sua própria existência, realizando todo o seu potencial humano. E a igualdade é condição fundamental para a liberdade. Cada um de nós só é livre se o outro também for, porque o outro somos nós todos. Liberdade pressupõe igualdade e vice-versa. Dessa conjugação entre liberdade e igualdade, nasce a solidariedade. A existência de ambas depende de sermos solidários entre nós na responsabilidade em cultivá-las. Não temos, portanto, como escapar da solidariedade. Esta é uma condição de partida para vivermos em sociedade. Mais do que uma condição para vida em sociedade, é uma condição para a existência da vida. A vida é, ela própria, uma manifestação da interdependência entre os seres vivos. Não há como ser vivo fora dessa interdependência.

Quando dissemos “uma sociedade em que as pessoas, de forma individual e coletiva, cuidam para que as relações se realizem com igualdade, liberdade e solidariedade”, queremos dizer, com o termo “cuidam”, que as pessoas criam as condições necessárias para que o fato ocorra. Ele não ocorrerá naturalmente. Basta ver a história da humanidade, ou então nos reportarmos à nossa própria insatisfação que motiva esse diálogo.

A questão de fundo passa a ser a definição de quais são as condições que precisamos criar para vivermos com liberdade, igualdade e solidariedade. Passemos então às questões sobre o que, onde e como mudar.

Caminhos para a mudança

Para avançarmos rumo a uma sociedade sustentável, precisamos, antes de tudo, conceber-nos como parte integrante da natureza; como parte dessa relação interdependente entre os seres vivos que Fritjof Capra chama de “teia da vida”. Quando falo “conceber-nos”, estou querendo dizer “nascermos de novo”. Transformarmos a nós mesmos em novos sujeitos. Criarmos uma nova visão sobre nós mesmos, sobre a nossa relação com o mundo, com a natureza, com o outro e conosco. Com uma visão holística do mundo poderemos refundar nossos juízos mestres que orientam nossas estratégias de convivência com o outro e nossas ações para satisfazer nossos desejos mais profundos. Aqui entram nossos princípios e valores. O que é que de fato importa? O que nos é caro e do qual não abrimos mão?

Ao concebermos nossa inserção no mundo como parte de um todo dinâmico, em que a mudança de uma parte afeta a outra, passaremos a valorizar o bem-estar do outro e do coletivo como condição para nosso próprio bem-estar. Enxergaremos os limites das estratégias individualistas e consumistas como forma de melhorar nossa própria qualidade de vida. Mudaremos nosso conceito de sucesso, medido atualmente por nossa capacidade de adquirir produtos e serviços no mercado, para um conceito que considera nossa capacidade de conviver e cooperar. Veremos que nem tudo pode ser comprado (apropriado privadamente) e que, se for comprado, perde seu valor. Perceberemos que a mercantilização de todas as relações é causa e consequência da nossa dificuldade de conviver com o diverso.

Veremos que aquilo que no fundo nos move é a mesma força que também impulsiona o outro. E que, o que de fato interessa é o amor que podemos sentir em nossa relação com o outro; é podermos imprimir nos corações e mentes dos que nos cercam as emoções e os registros de quem somos e o que fazemos para transcender nosso curto período de vida. Afinal, o querem aquelas pessoas que se dedicam a ser o melhor naquilo que fazem? Basta-lhes sentir a satisfação da sua própria potência? Basta-lhes saber que são capazes de realizar seus desejos ou eles querem também nosso reconhecimento pelo seu “feito”? Sem o reconhecimento do outro ninguém constrói sua própria identidade.

Assim, outra condição que precisamos criar é o reinado da ética. Ética aqui entendida como as leis internas que nos impomos, fruto do diálogo interno que fazemos com o outro que está em nós, necessária para a nossa existência enquanto indivíduo e coletivo. Sem o outro não há individualidade. Também não há ética. Ou, como diz Humberto Eco, a ética nasce quando o outro entra em cena.

Mas de que ética estamos falando? Estamos falando da ética fundada nos valores de respeito a todas as formas de manifestação da vida, à integridade física e moral das pessoas e à dignidade humana. Estamos, portanto, falando da ética que se fundamenta em princípios de cuidado, solidariedade e responsabilidade na relação com o diverso.

Os cuidados individuais e as mudanças pessoais comentadas até aqui são centrais, mas não são suficientes para nos levar à sociedade que queremos. São necessários cuidados coletivos e mudanças no ambiente de convívio desse coletivo. Aliás, as mudanças de visão e comportamento das pessoas só se estabelecem como cultura se houver mudança no ambiente social em que elas convivem. Uma mudança realimenta a outra, estabelecendo um novo padrão coletivo para os indivíduos, o qual denominamos cultura. Uma cultura de convivência do diverso com liberdade, igualdade e solidariedade requer um ambiente social em que a cidadania seja plena e a confiança entre as pessoas seja o padrão predominante.

Estamos falando de uma sociedade em que as diferenças entre as pessoas e a riqueza cultural daí derivada são valorizadas como um bem da humanidade. Deixam de ser fontes de injustiça e passam a ser desejadas e celebradas como fontes de alegria e de desenvolvimento humano.
A travessia entre a sociedade atual e a sociedade que queremos ser representa um grande desafio coletivo. Além dos problemas já comentados no inicio, tomemos a situação das mulheres e dos negros no mercado de trabalho urbano, retratada nas pesquisas realizadas pelo Instituto Ethos sobre o perfil social, racial e de gênero das 500 maiores empresas no Brasil, e teremos uma pequena medida da dimensão desse desafio.

De fato, a pesquisa nos revela a existência de dois grandes funis dificultando o acesso dos negros e das mulheres aos melhores empregos e cargos das empresas. O primeiro funil se verifica no acesso aos empregos e o segundo, que é interno, ocorre no acesso aos cargos. Na pesquisa realizada em 2007, por exemplo, as mulheres, cujas participações na população brasileira e na população economicamente ativa eram, respectivamente, de 51,3% e de 43,5%, alcançavam apenas 35% de participação no quadro de funcionários das 500 maiores empresas. E internamente, na ocupação dos cargos de chefia, sua participação reduzia-se gradualmente, até atingir apenas 11,5% nos cargos do quadro executivo.

Os dois funis são ainda mais estreitos para os negros. Representando 49,5% da população brasileira e tendo uma participação de 46,6% na população economicamente ativa, eles conseguem uma participação de apenas 25,1% no quadro funcional das 500 maiores empresas. No acesso aos cargos de direção, a queda de participação dos negros é radical, chegando a 3,5% nos cargos do quadro executivo.

Esses dados revelam como a desigualdade é mantida e reproduzida em nossa sociedade. Mas revelam também que, nas cidades, a atuação mais promissora para a mudança deveria se dar no mercado de trabalho. É lá que devemos colocar nossa melhor energia para construir essa nova cultura.

A estratégia de promover a diversidade com equidade nas organizações aparece como um caminho promissor. Primeiro, porque muitas empresas e outras organizações da sociedade já mostraram sensibilidade para essa questão. É assunto complexo, mas está ao alcance dessas organizações promover mudanças efetivas no quadro de desigualdade interna. Segundo, porque as mudanças de cultura implementadas no âmbito das organizações poderão ter um grande efeito indutor na cultura da sociedade. Mas tais mudanças não ocorrerão se ficarmos esperando que alguém faça alguma coisa. Nós é que temos de agir. Somos parte do problema e também podemos e devemos ser parte da solução.

*Paulo Itacarambi é vice-presidente-executivo do Instituto Ethos.

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